sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Papai Noel às avessas
Carlos Drummond de Andrade
Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender,
teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outras natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente da república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefante soldados presidente brigavam
por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um gato comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar abençoava os legumes.
Eis o nosso Brasil, nem ainda é natal e já há tantos Papais-noéis no Senado.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Vou-me Embora pra Pasárgada

Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira. Quero viver sem preocupações. Não quero mais saber de brigas entre “coronéis” e “cangaceiros”, “bispos” e “marinheiros”. Eu quero justiça, honestidade, saúde, sociedade. Saudade. Uma palavra tão nossa, mas de que adianta? Não há de que se ter saudade. Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira. Lá é outra civilização. Outra? Não sabia que tínhamos uma.

Antes um povo calado a um povo cego. O cálice de vinho, que nos era empurrado goela abaixo, tornou-se o acompanhamento preferido das pizzas do senado. E lá se vão às estradas, borrachos, não importa que alguém se esborrache e manche as ruas de sangue. Pai, afasta de nós esse cálice de vinho tinto de sangue que mancha a nossa história. Não, nenhuma lavagem de dinheiro tira essa sujeira. Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira.

Eu quero um lugar onde haja educação. Um lugar onde nenhuma gripe tire as crianças das escolas, seja gripe A, B, C ou D. Não importa, nosso povo não sabe a diferença entre cada letra. Vem, vamos embora que esperar não é saber. Vamos embora pra Pasárgada de Bandeira, porque esperar por causa de uma gripe, sem saber se adianta, não dará sabedoria aos nossos alunos.

Eu quero um lugar onde haja respeito, não haja divisões. Um lugar onde eu possa escolher a mulher que eu quero e tenha um processo seguro de impedir a concepção – o que evita abortos forçados. Um lugar onde eu tenha voz, que eu seja amigo do rei. Eu quero um lugar onde o meu país seja o mundo, onde não haja fronteiras. Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira, porque lá não há bandeiras.

Marina

"Conheci Marina Silva no início dos anos 80. Havia, ainda, uma ditadura no país e sonhávamos com a revolução socialista. Muito jovens e totalmente dedicados à militância, nos encontramos em reuniões em que usávamos codinomes. Fui saber que Marina era Marina alguns anos depois. Com ela, havia um baixinho de bigode, figura cativante, de olhar compenetrado e voz pausada, que organizava a luta dos seringueiros no Acre. Os dois nos falavam da defesa “dos povos da floresta”. Ele foi assassinado em 1988 e seu nome verdadeiro era Chico Mendes. Desde aquela época, acompanho a trajetória de Marina com respeito e admiração. Se aceitar o convite do PV, Marina será candidata à Presidência da República, o que seria a melhor notícia da política brasileira nos últimos anos.

Consta que o PT está empenhado em convencer Marina a permanecer no partido. Compreensível. Para o PT, o cenário ideal da campanha presidencial seria aquele no qual houvesse uma dinâmica plebiscitária. Dilma seria, então, apresentada como a continuidade das políticas sociais do governo contra os riscos de um retrocesso. O que é bom para um partido, entretanto, nem sempre é bom para o país. Uma campanha presidencial confinada à polarização entre o PT e o PSDB será também uma campanha pequena diante dos desafios que precisamos superar. Marina representa a possibilidade de se colocar no centro da discussão política o tema do desenvolvimento sustentável, o que permitiria sintonizar o país com o debate sobre a utopia final, aquela que envolve a sobrevivência da espécie humana.

Ainda que a maioria de seus políticos não perceba, o Brasil já está no centro da polêmica mundial por conta da Amazônia. Nossos governos têm sido incapazes de formular projetos de desenvolvimento que não sejam devastadores do ponto de vista ambiental. A simples presença de Marina na disputa obrigará os demais candidatos a se posicionar com mais clareza sobre estes temas. Mas Marina pode – melhor do que ninguém – pautar questões difíceis para os partidos tradicionais, a começar pelo enfrentamento da barafunda ética em que a política brasileira se meteu – especialmente desde que seu mais importante partido de esquerda foi “reformado” pela tradição. Dilma e Serra não podem apresentar qualquer proposta de reforma política. Suas candidaturas são já a expressão de poderosas coalizões conservadoras e de máquinas eleitorais financiadas precisamente pelos interessados na manutenção do status quo. Não são iguais, por óbvio. Por aquilo que representam, Dilma e Serra estão em uma relação equivalente ao que expressam na política norte-americana democratas e republicanos. Mas, se há alguém que pode ser o que Obama representou para os EUA, este alguém é Marina Silva.

Posso estar completamente enganado e não temos sequer pesquisas que permitam qualquer prognóstico. Penso, entretanto, que há um imenso vazio na política brasileira. Um espaço que nunca será preenchido por outro vazio, como com a ideia irresponsável do voto nulo que só piora as coisas, deixando a decisão nas mãos de quem tem menor senso crítico. O Brasil precisa de um projeto moderno e ético e do retorno da paixão à política, o que só pode ser traduzido por candidaturas muito especiais, dessas que fazem a gente se orgulhar ao votar. Anotem aí: Marina é a cara!"

Artigo publicado por Marcos Rolim, jornalista, na Zero Hora de 16/08.