segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Arcanjo

Quem precisa esperar em uma rodoviária está acostumado a ter sua moral importunada por pedintes das mais variadas espécies. Surdos que ouvem o barulho de nossas moedas e bêbados que precisam comprar leite pra criança. pra criança.urdos que ouvem o barulho de nossas moedas e bquele que cheia de humildade. os. quando assimilei o que ele havia me falado. Gabriel era diferente. Não estava pedindo, estava dando. Um pedaço de papel, com um pequeno texto. Ou, como diria Gabriel, um folhetinho.


Os olhos brilhantes e a voz fina eram comoventes. Até intimidadores seriam, não se tratasse de uma criança.


- Tio, ó um presente.


Eu já estava o dispensando, ligeiramente irritado por ter sido assustado e ter tido minha leitura interrompida, quando assimilei o que ele havia me falado. Presentes são surpreendentes onde, em geral, só se pede.


Devido à peculiaridade do fato, prestei-me a receber e ler o tal presente de Gabriel. Era uma passagem bíblica, Provérbios, 22.6. “Eduque a criança no caminho em que deve andar, e até o fim da vida não se desviará dele”.


Sete anos recém feitos, Gabriel, por ironia, não fazia ideia do que a mim entregava. Mesmo na segunda série, não sabia ler. Talvez tivesse se desviado um pouco de seu caminho. Mas já sabia escrever o nome, o que prontamente fez no folheto.


Fora a mãe quem havia lhe pedido que entregasse os folhetos.


- A mãe sempre me pede pra entregar folhetinho, afirmava o mensageiro de Deus.


Distante do filho e distraída em conversas, a mãe de quando em vez corria os olhos no saguão da rodoviária, buscando saber onde andava Gabriel. Alguma mente incriminadora talvez a comparasse com um patrão, esperando seu empregado cumprir o serviço que lhe foi destinado.


Pergunto a Gabriel se ele estava ganhando alguma coisa pra entregar os folhetos.


- Ela vai me dar um homenzão desse tamanho, dizia o guri, e marcava a altura na cintura.


Gabriel se despediu de mim e seguiu na sua insistente missão, vazia de ideologias e de profundos conhecimentos, mas cheia de humildade. Talvez a fizesse por servidão. Talvez por inocência, talvez por chantagem. Mas, com certeza, a fazia por humildade. Pois aquele que é o mais humilde entre nós, esse é que é o mais importante.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Pais e Filho

“Meu filho vai ter nome de santo. Quero o nome mais bonito”. Meus pais não pensaram dessa forma.

Quase sempre fui indesejado. O acasalamento era apenas uma forma de prazer, eles não esperavam por mim. Porém, algum tempo depois, surge a notícia: havia, no útero de minha mãe, algo odioso; células se desenvolviam rapidamente; teriam um filho. Para minha mãe, um câncer. A “poareta” engordaria de maneira descontrolada (nunca mais entrou em forma).

Meu pai era indiferente. Já tinha inúmeras crias bastardas. Era o “pussyfucker” da universidade. Quando conheceu minha mãe, ele não teve dúvidas: queria chupar os gomos daquela LIMA; queria colocar a chave naquela PORTA. E foi o que ocorreu. Eram interfaces interagindo. Não temiam as consequências. Não se importavam com qualquer vírus que pudesse ser transmitido. O resultado é este que está a escrever.

Houve, todavia, um momento em que fui amado. Foi-lhes dito que uma mocinha viria. Minha mãe estava mais do que alegre. Era um Porto Alegrete. Eles me queriam. A Carolina nasceria.

O dia de dar a luz tinha finalmente chegado. Tudo era um conto de fadas. Meu pai, que era um exímio músico, fez uma canção para mim. Foi a primeira vez que ele compunha para um objetivo diferente de um “vuco-vuco”. O parto foi rápido. Minha mãe gritou apenas duas vezes: quando eu estava entalado entre suas pernas; e quando ela me viu. “Ele nasceu com um dedo a mais!” Foi isso o que o médico disse. O conto de fadas teve o seu final triste. Meu pai mudou a letra da música. Agora ela falava sobre fadas e varas de condão. Eu fui repudiado. Tinham de fazer algo contra esse pedaço errado de vida. Pensaram em cortar meu membro junto com o cordão umbilical. Entretanto, uma ideia diabólica estala na cabeça de minha mãe:

- Dar-lhe-emos o nome maldito (hoje é mal dito).

Havia tantos nomes. Poderiam me chamar de Kat..., Xerox ou Fotocópia. Não bastava. Nascia aí o Gabriel Eduardo.

Eu nunca vou me acostumar. Pouca gente me chama como deveria. As pessoas cujos nomes são de extremo bom gosto preferem dizer apenas “que merda”.

Preferiria ter sido amputado.

Ass: Gabriel Eduardo Porto Lima

domingo, 20 de setembro de 2009

Protesto

Domingo de sol depois de uma semana de chuvas contínuas. A cidade respira um sentimento regionalista, típico de 20 de setembro. Almoço em família, futebol na TV... Tudo conspirava para um belo desfecho de semana, se não fossem aquelas bandeiras. Aquelas malditas bandeiras.


Mescladas à batida das vaneiras e ao resmungo das gaitas, elas tremulavam. De um lado da rua o 11, do outro o 15. O azul e o vermelho. De um lado o fisiologismo, do outro também. De um lado a compra de voto, do outro (adivinha!) também. Eram elas a causa da constante sensação que me acometia de que algo estava errado. Provavelmente eram também o motivo da minha gastrite ter se intensificado.


Ouço de relance: “... sirvam nossas façanhas de modelo a toda Terra...”. Nossos queridos representantes fazem chacota com nosso voto, são cassados, se candidatam novamente, são impugnados, repetem as chacotas, e querem que tais façanhas sirvam de modelo para qualquer coisa. E as pessoas, por algum motivo que eu desconheço completamente, balançam fervorosamente aquelas malditas bandeiras. E não sentem vergonha nem nada.


Existe alternativa? Se existe, se esconde bem escondida. Esperança existe, mas também não sei até quando. Mas eu dormirei tranquilo, e minha gastrite acalmou. Votei 99.

domingo, 13 de setembro de 2009

Diálogos possíveis (?)

Dois amigos andando em algum canto de fronteiras indefinidas. Param num frichóp.

– Entrar num aeroporto e sair sem porcarias de frichóp não dá.
– Dá. É só não ter dinheiro.
– Mas nós temos.
– Tu tens.
– Bom dia, em que posso ajudar?
– Roupas.
– O homem vem num frichóp para comprar roupas...
– Sou eu quem tenho dinheiro, não?
– Sou eu quem impede que tu gaste em qualquer coisa.
– Não é.
– Elas estão por aqui. Deem uma olhada, eu volto logo.
– Tem umas coisas legais de grife aqui.
– Não tem nada que preste aqui.
– Olha essa calça.
– Jeans normal.
– Não é um jeans normal.
– É azul.
– Índigo.
– Como todos os outros.
– É um jeans de marca por um terço do preço que custa em casa.
– Não quer a lingerie? Está barata. É claro que tu quer.
– Eu costumo usar roupa íntima masculina.
– O que é bem inteligente da tua parte.
– Vamos ver o que mais tem por aqui. Olha aqueles charutos.
– Eu não quero um câncer.
– Não é pra ti. E além do mais, grandes homens abonados fumam charutos.
– Ainda estou concentrado em chegar a “abonado”.
– Não tem nicotina e nem alcatrão num charuto.
– Agora tu diz que esses são de primeira linha.
– E são.
– Charutos são mais prejudiciais que cigarros.
– São menos viciantes.
– São tão ruins quanto.
– E maconha?
– Que que tem?
– E maconha, presta?
– Cheira melhor.
– Cheirar é melhor? Como se cheira maconha?
– Não, a fumaça. A da maconha tem um cheiro melhor que a do resto.
– Critério bem válido esse teu.
– Olha lá a mulher oferecendo uma tequila.
– Quem sabe nós não compramos uma...
– Da lingerie pra tequila, passando por charuto...
– Eu só quero carregar algo daqui.
– Desesperadamente, pelo jeito.
– Frichóp é assim. Dispara o meu lado consumista.
– Bom, o dinheiro é teu mesmo.
– Quais as tuas intenções com isso?
– Te fazer gastar menos?
– Se tu quer acreditar nisso... O que eu quero é comprar alguma coisa. Aquela tequila mesmo, quem sabe.
– Tequila é a bebida alcoólica que mais leva mulheres para a cama.
– Quem disse?
– A ciência.
– Essas coisas eu calculo por experiência própria.
– Tem uma pesquisa de uns ingleses lá, que diz isso.
– Concluíram de forma empírica?
– Vou saber...
– Se fizeram, são geniais. Vou virar pesquisador na área.
– E a bebida mais brochante é o vinho. Aliás, não é brochante, mas não dá muito certo.
– Só se for contigo.
– Nunca tentei com vinho.
– “Nunca tentei”, ponto, tu devia dizer.
- ...
– Bom, a mulher não aparece mais. Dá uma olhada aí enquanto eu vou no banheiro. Fica com o dinheiro, caso eu demore pra voltar.



– E então, escolheram alguma coisa?
– Meu amigo vai querer levar aquela lingerie. Pode embrulhar.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Raiva paulistana

Hoje, São Paulo me enoja. Não sei como vivi por tanto tempo aqui. 17 anos. É muito tempo. Se não fosse por família e amigos não voltava, nunca, mesmo. Esses mais de 13 milhões de paulistanos têm orgulho de quê? Da poluição descontrolada que mata, pouco a pouco, a pequena fauna que lhes sobra? De ser a cidade mais rica da América Latina, quando, ao andar por suas ruas, se vê, mendigos e mais mendigos. Jovens com suas vidas destruídas pelo crack, a única maneira de escapar da realidade, de não perceber que se é a ponta mais fraca nessa nossa desigual desigualdade social.

Têm orgulho desse escapismo das classes favorecidas, que se trancam em seus apartamentos e carros blindados, fingindo nada ver, e sentem-se seguros, sentem-se livres? De essa vida impessoal ao extremo, onde se aprende a arte de desviar de tantos corpos, inimportantes, em meio às sempre lotadas e movimentadas ruas? De explorar o pobre, e ao ver um pequeno sorriso em seu rosto, orgulhar-se de viver no país mais feliz do mundo? Têm, têm orgulho de tudo isso. Mas têm porque acham que só isso é vida. Quem dera todos os paulistanos conhcessem a vida em outra cidade...

Afinal "não adianta mesmo ser livre, se tanta gente morre sem ter como comer".


Texto escrito por este paulistano, em um momento de extrema negação de suas origens, ao passar uma tarde de domingo no abandonado centro de sua cidade natal.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Papai Noel às avessas
Carlos Drummond de Andrade
Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender,
teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papais-noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças.
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outras natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente da república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefante soldados presidente brigavam
por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um gato comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar abençoava os legumes.
Eis o nosso Brasil, nem ainda é natal e já há tantos Papais-noéis no Senado.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Vou-me Embora pra Pasárgada

Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira. Quero viver sem preocupações. Não quero mais saber de brigas entre “coronéis” e “cangaceiros”, “bispos” e “marinheiros”. Eu quero justiça, honestidade, saúde, sociedade. Saudade. Uma palavra tão nossa, mas de que adianta? Não há de que se ter saudade. Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira. Lá é outra civilização. Outra? Não sabia que tínhamos uma.

Antes um povo calado a um povo cego. O cálice de vinho, que nos era empurrado goela abaixo, tornou-se o acompanhamento preferido das pizzas do senado. E lá se vão às estradas, borrachos, não importa que alguém se esborrache e manche as ruas de sangue. Pai, afasta de nós esse cálice de vinho tinto de sangue que mancha a nossa história. Não, nenhuma lavagem de dinheiro tira essa sujeira. Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira.

Eu quero um lugar onde haja educação. Um lugar onde nenhuma gripe tire as crianças das escolas, seja gripe A, B, C ou D. Não importa, nosso povo não sabe a diferença entre cada letra. Vem, vamos embora que esperar não é saber. Vamos embora pra Pasárgada de Bandeira, porque esperar por causa de uma gripe, sem saber se adianta, não dará sabedoria aos nossos alunos.

Eu quero um lugar onde haja respeito, não haja divisões. Um lugar onde eu possa escolher a mulher que eu quero e tenha um processo seguro de impedir a concepção – o que evita abortos forçados. Um lugar onde eu tenha voz, que eu seja amigo do rei. Eu quero um lugar onde o meu país seja o mundo, onde não haja fronteiras. Eu vou-me embora pra Pasárgada de Bandeira, porque lá não há bandeiras.

Marina

"Conheci Marina Silva no início dos anos 80. Havia, ainda, uma ditadura no país e sonhávamos com a revolução socialista. Muito jovens e totalmente dedicados à militância, nos encontramos em reuniões em que usávamos codinomes. Fui saber que Marina era Marina alguns anos depois. Com ela, havia um baixinho de bigode, figura cativante, de olhar compenetrado e voz pausada, que organizava a luta dos seringueiros no Acre. Os dois nos falavam da defesa “dos povos da floresta”. Ele foi assassinado em 1988 e seu nome verdadeiro era Chico Mendes. Desde aquela época, acompanho a trajetória de Marina com respeito e admiração. Se aceitar o convite do PV, Marina será candidata à Presidência da República, o que seria a melhor notícia da política brasileira nos últimos anos.

Consta que o PT está empenhado em convencer Marina a permanecer no partido. Compreensível. Para o PT, o cenário ideal da campanha presidencial seria aquele no qual houvesse uma dinâmica plebiscitária. Dilma seria, então, apresentada como a continuidade das políticas sociais do governo contra os riscos de um retrocesso. O que é bom para um partido, entretanto, nem sempre é bom para o país. Uma campanha presidencial confinada à polarização entre o PT e o PSDB será também uma campanha pequena diante dos desafios que precisamos superar. Marina representa a possibilidade de se colocar no centro da discussão política o tema do desenvolvimento sustentável, o que permitiria sintonizar o país com o debate sobre a utopia final, aquela que envolve a sobrevivência da espécie humana.

Ainda que a maioria de seus políticos não perceba, o Brasil já está no centro da polêmica mundial por conta da Amazônia. Nossos governos têm sido incapazes de formular projetos de desenvolvimento que não sejam devastadores do ponto de vista ambiental. A simples presença de Marina na disputa obrigará os demais candidatos a se posicionar com mais clareza sobre estes temas. Mas Marina pode – melhor do que ninguém – pautar questões difíceis para os partidos tradicionais, a começar pelo enfrentamento da barafunda ética em que a política brasileira se meteu – especialmente desde que seu mais importante partido de esquerda foi “reformado” pela tradição. Dilma e Serra não podem apresentar qualquer proposta de reforma política. Suas candidaturas são já a expressão de poderosas coalizões conservadoras e de máquinas eleitorais financiadas precisamente pelos interessados na manutenção do status quo. Não são iguais, por óbvio. Por aquilo que representam, Dilma e Serra estão em uma relação equivalente ao que expressam na política norte-americana democratas e republicanos. Mas, se há alguém que pode ser o que Obama representou para os EUA, este alguém é Marina Silva.

Posso estar completamente enganado e não temos sequer pesquisas que permitam qualquer prognóstico. Penso, entretanto, que há um imenso vazio na política brasileira. Um espaço que nunca será preenchido por outro vazio, como com a ideia irresponsável do voto nulo que só piora as coisas, deixando a decisão nas mãos de quem tem menor senso crítico. O Brasil precisa de um projeto moderno e ético e do retorno da paixão à política, o que só pode ser traduzido por candidaturas muito especiais, dessas que fazem a gente se orgulhar ao votar. Anotem aí: Marina é a cara!"

Artigo publicado por Marcos Rolim, jornalista, na Zero Hora de 16/08.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Mais vale um diploma na mão do que um jornal voando

O jornalismo foi desregulamentado. Podemos fazer uma comparação com um fato da vida de Mário Quintana. O poeta, apesar de seus fantásticos poemas, jamais foi aceito na Academia Brasileira de Letras. João Chagas Leite, em honra a Quintana, canta: “[...] a academia é só mania de quem tem plata”. Agora, parece que a mania dos que têm plata é perseguir os jornalistas. Para isso, foi dito que qualquer pessoa pode exercer a profissão, só é preciso ter o dom da escrita, ou seja, a academia é só mania de quem não tem talento.

A ABL perdeu a chance de ter o pássaro na mão. A conseqüência foi óbvia: a Ave Sonora voou, ficou marcada em nossa história e, com poesia, esculachou a Academia.

Ao contrário do ocorrido com o poeta gaúcho, o momento exige apoio à academia. As disciplinas teóricas, exigidas para a formação, dão ao acadêmico sua base intelectual, o que o difere dos outros “profissionais” da área. O diploma é essencial para um jornalista, para termos informação de qualidade. O estudo é a chave para que a imprensa não seja tomada por “jornaleiros”. Estamos sendo desvalorizados como foi Mário Quintana. Todavia, sabemos que todos estes que aí estão atravancando o nosso caminho, eles passarão, nós passarinho.

O contra-ataque do zumbido




Era a última aula de Sociologia da Comunicação no semestre. O ritmo, no entanto, não diminuiu em relação àquele com o qual me acostumei a ter nas quintas-feiras do semestre inteiro: temas densos, mas pontuados com muitas referências, fossem televisivas, literárias, cotidianas. Falava a professora VENEZA MAYORA sobre um canal da TV paga – ela não identificou qual – que mostrava um documentário sobre a montagem do show dos Rolling Stones no Rio de Janeiro. Os organizadores norte-americanos criticavam os trabalhadores brasileiros contratados que, a cada vez que passava uma mulher bonita na praia, paravam o trabalho para observar. Depois ainda demoravam em voltar às suas tarefas: imaginemos a freqüência com que isso acontecia, em plena Copacabana. Dizia ela que era um absurdo os organizadores criticarem o modo de, digamos, o brasileiro apreciar a própria beleza brasileira. “É um modo colonial de nos olhar. Nós, os tropicais”, dizia ela (nós, locados na boca dos montes santamarieses, tropicais? Quanto temos de identificação com a brasilidade dos trópicos, nós aqui abaixo do paralelo 30? Mas essa discussão fica para uma próxima).


Fiquei com a idéia em suspenso, até me deparar com um comentário da coluna de Mário Marcos, na Zero Hora, ainda sobre a Copa das Confederações. Sim, ela já acabou há mais de mês, mas requento aqueles episódios para falar de outras cositas. Admito não ser leitora assídua do caderno de esportes, excetuando as colunas do David Coimbra, que fala de futebol só no último parágrafo. Naquele dia, no entanto, não foi só sobre placares e dribles que tratou a coluna: falava Mário sobre as equipes de TV da Holanda que procuraram o presidente da FIFA para pedir que as vuvuzelas (palavra zulu que significa ‘fazer barulho’), as de fato barulhentas cornetas usadas pelos sul-africanos fossem proibidas. Simples assim: a esmagadora maioria dos sul-africanos leva suas vuvuzelas aos estádios, gosta delas, adora fazer barulho com elas, e aí os Holandeses querem silêncio e pedem que a FIFA as proíba. Os jornais daquele país reagiram, criticando a soberba holandesa e ainda fecharam com: - Não gostaram? Voltem pra casa. Fez bem a imprensa sul-africana, dizia Mário Marcos. E o presidente da FIFA, suíço com toda diplomacia, não proibiu coisa alguma, ainda declarando que “Censurar a forma com que alguém expressa sua alegria é discriminação”.


Claro que há, em certos casos, um certo nacionalismo burro, uma defesa automática. No colégio em que eu estudava, certa vez uma intercambista escandinava reclamou que os carros em Santa Maria nunca paravam para que os pedestres pudessem atravessar a rua. Um colega, num arroubo, disparou que “ela é uma enjoada, quer sempre as coisas do jeito dela, aqui é nosso país”. Mas a verdade é que eu também sentia isso, que talvez fosse melhor se os motoristas fossem mais educados, afinal admirávamos as cidades em que a civilidade se traduzia no trânsito e por aí vai. Não era simplesmente uma questão de preferência da garota, ou mera tolerância a costumes, mas verdadeiramente uma questão de segurança e de educação. Contra esse tipo de reação irrefletida, precisamos lutar contra: o primeiro passo para superar o subdesenvolvimento é ter consciência dele.


Ah, mas as cornetas são chatas mesmo, suspiraria alguém. Não duvido: meu vizinho de 7 anos tem uma corneta, uma só, soprada com a capacidade de um pulmão de criança e ela incomoda o suficiente. Mas não é isso que está em questão. A pergunta não é: “nós gostamos das vuvuzelas?” e sim: “nós podemos pedir isso?”. Estamos falando de outra coisa: respeito. Se no exemplo da professora se poderia pôr em questão se era mesmo um ‘modo colonial’ de olhar para os brazucas ou se os caras estavam dando mesmo uma de folgados (já que estavam em serviço) curtindo o clima praiano, na atitude em relação aos sul-africanos é um colonialismo flagrante. Nós mesmos, apesar do complexo de vira-lata, em se tratando do continente-mãe, também olhamos de uma forma distorcida: quantas vezes já ouvimos o senso comum falar sempre África, como se fosse um país, esquecendo que é um continente enorme, cheio de particularidades. E fazemos o mesmo com Paraguai, Uruguai, Bolívia: olhamos de cima para baixo. São questões delicadas, há que se ponderar, sempre, sempre.


E enquanto baixava a poeira da polêmica, os sul-africanos criaram a kuduzela. Uma ótima e barulhenta Copa de 2010 para todos nós!


[Texto publicado anteriormente em http://www.futebesteirol.blogspot.com/ ]