quinta-feira, 23 de julho de 2009

Crônica de uma reportagem qualquer

Tenho quatrocentas e duas ideias de reportagem por HORA. Passei os últimos três anos contando, uma por uma, para chegar a esta média. Inclusive quando dormia. Aliás, PRINCIPALMENTE quando dormia. Fiz a contagem seguindo a mais rigorosa METODOLOGIA de pesquisa. Eu juro. Está tudo guardado nessas gavetas que os CUPINS hão de comer. Planilhas diárias com tabelinhas bem divididas e números traçados a lápis. Às vezes, mil e tantas ideias. Noutras, quinze. Dependia do estado ANÍMICO.

Se não escrevo nem quatrocentas e duas reportagens por SEMANA, é porque falta algo INDEFINÍVEL. “Vontade” talvez seja um bom chute. Mas às vezes alguns projetos passam por esse grande FILTRO que é a preguiça. São levados adiante. Em maio, decidi contar sobre o Futebol Clube Rio Pardo. Resumidamente, o FCRP, que pela sigla poderia até ser uma equipe formada pelos Relações Públicas com os quais nos PECHAMOS pelos corredores do 21, é o mais novo clube de futebol profissional do Rio Grande do Sul. Foi fundado em 27 de novembro de 2008, e neste ano entrou na Segunda Divisão do campeonato estadual.

Seria mais um nome na tabela da competição e ninguém falaria a respeito. Sempre é assim. Por isso, resolvi AGIR. Não pelo Rio Pardo, mas pelo PERIODISMO puro. Entre incontáveis coisas, a graça dessa profissão CASTRADA de diploma está na possibilidade de buscar o novo. Ir atrás daquilo que ninguém havia se ATINADO e divulgar uma história. Minha memória péssima me impede de saber quem PARIU essa frase, mas certa vez alguém disse que “um escritor é quem escreve coisas extraordinárias sobre fatos banais, e um jornalista escreve banalidades sobre coisas extraordinárias”. Penso que é possível buscar a dupla extraordinariedade – no aparentemente ordinário.

Quiçá o “jornalismo literário” nos conte mais sobre isso. Não me cabe aqui fazer um TRATADO DE METAFÍSICA, assim que deixo para os registros apenas que um GARI, que em condições SÃS não receberia um trio de linhas num diário, pode render uma percepção mais interessante (e COMPREENSÍVEL) do que versões frias e EMBASADAS. Lendo assim parece uma defesa às histórias que não vendem jornais. Não é. Seguindo esse DOGMA, fiz os preparativos para a loucura de Rio Pardo, catar informações sobre uma equipe minúscula de futebol, que poderia nascer, viver e morrer sem ir para as páginas mais lidas – e nem provocar mágoas por causa disso.

Mais de uma dezena de ligações: para jornalistas locais, para a rádio da cidade e para o jornal de Rio Pardo e, finalmente, para os responsáveis pelo clube, ajudaram a construir um NORTE. Era tarde de uma quinta-feira quando obtive um número direto para contatar o senhor Tabajara Ramalho de Andrade, presidente do Rio Pardo, e marcar algo parecido com uma ENTREVISTA. Haveria jogo dali a dois dias, no sábado, e eu queria fechar a coleta de dados sobre o clube antes disso. Telefonei para Tabajara. Uma, duas, três, sete vezes. Do meio da tarde até a noite, a intervalos regulares e sem nunca ser atendido, tentei EM VÃO conversar com o homem. Às dez e meia da noite houve resposta. Questionei o VIVENTE do outro lado da linha se aquele era o número de Tabajara.

– Depende – disse-me ele.

Guardei para mim o pensamento PRECONCEITUOSO de que um atendimento daquela forma lembrava os estereótipos de CRIMINOSOS com medo de serem identificados, e mantive um diálogo. Sem saber se a pessoa era o próprio Tabajara me ENROLANDO ou algum secretário que tomava conta do celular dele enquanto o presidente fazia uma reunião (por que diabos o RIO PARDO faria reuniões às dez e meia da noite?, me perguntei), fiquei de ligar no dia seguinte. Percebi que não me levavam A SÉRIO, já que não tinha o nome de qualquer veículo de imprensa RESPEITÁVEL para anunciar a entrevista, mas com irreveláveis táticas de PERSUASÃO pude chegar às respostas que tanto queria. Atencioso, Tabajara contou os planos do clube, falou sobre a campanha e revelou que a iniciativa de criar a equipe partira da prefeitura da cidade. No entanto, garantiu: “eles não têm ingerência nenhuma”.

Às oito da manhã do sábado, o despertador do meu celular DECEPOU o que restava do meu sono e avisou: “se quer ir para Rio Pardo, acorde, CABRÓN”. Devo ter passado uma boa meia hora na cama, certo de que não precisaria fazer a viagem para ter um bom TEXTO, até concluir que deveria ESGOTAR as possibilidades de ENRIQUECER a reportagem. Levantei, me arrumei e botei uma mochila nas costas. Dentro dela, jazia O declínio do homem público, obra então onipresente entre os DISCÍPULOS de Veneza, que eu pretendia ler durante a jornada. Não me arrependi da viagem. Cheguei numa Rio Pardo que festejava seus 200 anos de história, conheci a alcunha da cidade (“Tranqueira Invicta”), podendo fazer REFERÊNCIAS a ela na versão final da escrita, e ainda ouvi muitos causos POPULARES sobre o futebol local. Além, claro, de ver o tal jogo. De alguma forma, tudo aquilo somou experiências, e em cada vírgula da reportagem havia um traço do AMBIENTE sentido por lá.

Se nada disso tivesse acontecido e tudo fosse BROCHURA, restaria o consolo de que li umas cento e cinquenta páginas do LIVRETO de Sennett, durante uma longa viagem que só foi acabar às onze da noite, quando o ônibus me DESPEJOU novamente na Boca do Monte. No domingo, com fatos, fotos e CANTIGAS, sentei-me à frente do computador e me pus a digitar. Poderia escrever umas trinta páginas. Tentei não passar de SUPORTÁVEIS três. Sou absurdamente crítico com os meus textos, acho que NENHUM deles presta, mas aquele tinha a glória do esforço. Fiz a pauta, apurei, investi tempo e dinheiro próprios e saí com uma reportagem única. Garanto que não há nada mais completo sobre o Futebol Clube Rio Pardo – e só surgirá se algum dia o time virar uma VEDETE para a grande imprensa esportiva que, via de regra, só valoriza o interior quando seus times estão bem. Mesmo que não existisse um público disposto a CONSUMIR essas informações que ninguém mais se anima a pesquisar (e há), só a perspectiva de, daqui uns anos, os rio-pardenses interessados em saber como o seu clube iniciou encontrarem aquele texto já fez valer a pena.

É um exemplo do futebol, mas poderia ser de qualquer outra área. Essa é a ESSÊNCIA do jornalismo. E vale também para o DIA SEGUINTE. Com o passar dos meses, a situação do Rio Pardo ficou menos LUMINOSA. Por razões que nunca ficaram bem esclarecidas, o dinheiro RAREOU. Os jogadores, muitos dos quais chamam Tabajara hoje de “safado”, fizeram greve e exigiram a saída do presidente – e a prefeitura, que “não tinha” ingerência sobre o time, agiu decisivamente para tirá-lo de lá. Tabajara tornou-se enormemente impopular em Rio Pardo. Para se PREVENIR de ligações de torcedores furiosos, talvez tenha sido melhor continuar dizendo “depende” quando perguntado se seria ele mesmo ao telefone.

A reportagem de Rio Pardo: FC Rio Pardo, cento e sessenta e quatro dias depois
E o comentário sobre o que veio depois: Um estádio e as suas lendas (por Iuri Müller) e O treinador interrompido (por mim)

Maurício Brum.

2 comentários:

Giuliana disse...

Tranqueira invicta! Maravilha!
Isso me lembrou Quintana, abordado na rua:
- O senhor é Mário Quintana?
- Às vezes...

Belo reportagem, Maurício!

Anelise. disse...

Como sempre, Maurício, conseguistes transformar um fato corriqueiro em matéria de qualidade. Sou fã desses meus colegas. hahah :P