sexta-feira, 24 de julho de 2009

Testemunho de uma expedição oriental - I

Os causos que rondam a gripe suína me assustaram. Ouvi boatos de pessoas aterrorizadas em Quaraí. Lendas sobre insanidade nas avenidas de Santiago e confusão completa no Alegrete. Decidi tomar uma atitude. Chegara a hora de rumar ao Uruguai. Porque não há nada mais esclarecedor do que conhecer os abalos desde o seu epicentro. Caminharia pelas nebulosas calles de Montevideo sob garoa fria, em clara afronta ao maldito vírus. Participaria do secular ritual do mate oriental para desmitificar certas historietas. Atestaria, enfim, com a exatidão de quem viveu no osso, que a gripe suína é um exagero dos mais brutais. Na verdade, a viagem já estava marcada, o hotel reservado e as almas à espera. E este é o relato de uma jornada que ocorreu APESAR das epidemias mundanas.

O trajeto tinha algo de inusitado: Santa Maria – Pelotas – Chuí – Montevideo. Por que Pelotas, se por Rivera as distâncias seriam bem menos opressoras? O motivo do desvio de rota (são tão normais...) chama-se Riograndense Futebol Clube. E o tal motivo venceu o Esporte Clube Pelotas nas cercanias das charqueadas de outrora. Mas isso pode ser melhor detalhado, in loco, para os que se interessam pelo futebol mais distante dos holofotes. Voltemos para el viaje. De Pelotas ao Chuí, é preciso superar uma reta que surge como interminável. Quilômetros e mais quilômetros de capivaras mortas na beira da pista (caminhões noturnos destroem a biodiversidade da reserva do Taim), de bolichos escassos e de coqueiros que sobreviveram ao vento frio do inverno pampeano.

Mas o Chuí é alcançável, e lá chegamos. Para ultrapassá-lo, é necessário obter a permissão para adentrar as terras uruguaias. Nada de muito rigoroso. Principalmente quando os aduaneiros parecem ostentar um humor ao menos aceitável. E o rigor inexiste porque o Uruguai necessita de turistas. Brasileiros, argentinos, chilenos e peruanos deixam parte do conteúdo de suas carteiras em Montevideo, Punta del Este e Piriápolis – alimentando a economia de um país pequeno, envelhecido e que busca a confortável situação financeira do início da década passada, quando era tido como a “Suíça da América do Sul”. (Ápodo bastante IRREAL, já que os uruguaios não se suicidam no inverno e tampouco são famosos pela neutralidade existente nos alpinos). Dado o oquei, iniciava um longo trajeto pela banda oriental.

O primeiro destino merecedor de uma parada foi a Fortaleza de Santa Teresa, construída por Assis Chateaubriand em meio ao infindável lucro da TV Tupi, nos meados dos anos cinquenta. Mentira. A fortaleza foi erguida no século XVII e alternou entre o domínio de portugueses e espanhóis. O forte tem clara importância histórica, mas não exageremos a ponto de incluir detalhes, datas e nomes de generais de antanho no texto. Até porque exigiria uma pesquisa assaz inútil para a ocasião. Fato é que o local é bastante fotogênico, como CONSTA no retrato que colore o texto, e abriga um dos maiores museus militares da República Oriental d'Uruguai. O militarismo uruguaio, aliás, é questão realmente interessante: a pequena extensão geográfica do país só não foi menor porque, desde sempre, os uruguaios a defenderam com unhas e foices (?) em tratados mais exaltados e conflitos realmente sangrentos. Daí a importância do exército nacional. O outro lado da moeda aparece em período mais recente, o da ditadura militar, o qual logo adentraremos.

Após a entrada do forte, que pertence a cidade de Castillos, surge um estranho aviso na rota cujo destino é a Capital. Em duzentos metros, conta a placa, a pista servirá também para POUSOS DE AERONAVES. E é tudo real. A estrada se torna incrivelmente larga e a ameaça de um avião disputando espaços na rodovia fornece uma profunda tensão àqueles instantes. Por algum tempo, um pedaço de asfalto pode abrigar carros, caças e coelhos que teimam em atravessar a pista na partícula mais perigosa do universo. Pensei em relacionar tudo isso à democracia de Tabaré Vázquez, mas fica para a próxima. Os aviões não surgem, a estrada encolhe e a normalidade volta a imperar no bucólico Interior uruguaio. Rocha, a capital do departamento que leva o mesmo nome, é a única cidade MÉDIA em um raio gigantesco. Sobre Rocha, posso contar que em uma rádio AM da cidade os belos acordes de “Chora, me liga!” davam sinais de poderosa influência brasileira. Não deveria ter contado.

O percurso inicial era litorâneo, mas do Chuy uruguaio em diante, a Ruta 9 ENVERGA para dentro. A beira do mar nessa região é território quase inalcançável – a começar por Cabo Polonio, localidade presente nas canções de um certo Jorge Drexler, cantautor consagrado (?) pela turma. O acesso só se faz possível com um feroz veículo dotado de 4x4, algo que logicamente não era o caso do carro em que viajei. Horas mais tarde, acordei em Punta del Este. A melancolia da vastidão platina é de uma sonolência increíble, acreditem. Punta, para os desavisados, é o paraíso aquático dos novos ricos do Sul. Mansões beijam a areia antes pisada por moluscos inofensivos. Muito porque é um cenário, dizem, espetacular. Estive lá e não posso concordar ou rechaçar. Simplesmente não vi. Um temporal expurgava os turistas da praia, e a neblina transformava a visão além-mar em pura ilusão. Posso afirmar que definitivamente não nasci para Punta del Este.

Punta dista uma hora de Montevideo, ao menos por vias terrestres. E a recepção chuvosa se repetiu na Capital. Com tempo bom, é possível até avistar as luzes de La Plata, na Argentina, quando se mira o Rio da Prata. Mas o fog uruguayo impedia visões com ousadia superior a dez metros. Com horas e horas de viagem nas espaldas, a noite se restringiu a visitar um shopping próximo e degustar o mais popular dos chivitos do cardápio. Tudo na sexta-feira. O sábado matinal foi de passeios pelo Bairro Sur até a Ciudad Vieja. O primeiro, conforme informações anteriormente coletadas nesse rincão infindável que é a internet, seria o bairro dos negros de Montevideo – quase um gueto. As construções seriam peculiares e mais singelas. Por ser feriado (18 de julho, dia do juramento da primeira constituição do país), inexistiu movimentação nas calles, como mostra a fotografia. Na Ciudad Vieja, até os muros TRANSBORDAVAM política. Mensagens pró-Honduras, desaforos dirigidos ao atual governo, contestações múltiplas e variadas que vez que outra atingiam até o plano espiritual (foto).

A maior parte das pichações, porém, recordava o período da ditadura militar. Os milicos herdeiros de Artigas foram menos discretos que os responsáveis pela matança no Brasil ou na Argentina, para ficar apenas com a repressão no Cone Sul. Por aqui, os desaparecidos quedaram bem escondidos por bons anos, enquanto que em terras portenhas os voos da morte tratavam de jogar os cadávares no fundo do oceano. N'uruguai, a população se deparava com os corpos dos perseguidos pelo governo nos depósitos de lixo – sem maiores cerimônias. A brutalidade do regime impediu que a ferida se fechasse até hoje. Evoca-se aqueles anos apenas como protesto, na imensa maioria dos casos. A democracia uruguaia, hoje, parece consolidada. Mas esperemos pelas eleições de outubro. E também pela sequência deste relato, que esgotou o seu espaço. Haverá parte dois, muchachos.
Iuri Müller.

5 comentários:

Maurício Brum disse...

VÁ ESCREVER BEM DESSE JEITO LÁ NO FUTEBESTEIROL CHE

Giuliana disse...

E de un país con el nombre de un río, o mais belo relato do blog.

Quando sai a excursão?

Parabéns pelo texto, Iumi!

Marlon Dias disse...

Parabéns Iuri!
Belo relato deste 'Edén Olvidado'.

Ansioso pela segunda parte. *.*

Anelise Dias disse...

Ansiosa pela segunda parte. *.*

Iuri Müller disse...

Estou quase terminando!